Hoje ao acessar as redes sociais me deparo com um vídeo de uma câmera de segurança postado num blog local. Na gravação, duas crianças dirigindo uma motocicleta assaltam um estabelecimento comercial, no vídeo dá pra ver quando rendem um homem, adulto. As armas contrastam com o tamanho dos seus corpos pequeninos, corpos de criança. Corpos que deveriam estar em outros lugares. Assisti atônita a violência que se torna absurdamente avassaladora a cada dia na minha cidade e não me conformei, não consegui dormir, não consegui esquecer daqueles meninos com armas, em vez de brinquedos, nas mãos.
Pensei automaticamente no meu aluno José*. José tem 6 anos e uma dificuldade imensa em demonstrar afeto pelos seus colegas. A única linguagem que ele parece conhecer é a violência. A utiliza para conseguir o brinquedo que quer, bate quando quer um lápis emprestado, soca o colega na hora do recreio porque foi impedido de jogar bola com ele. Nem o pai nem a mãe de José foram a escola quando solicitamos sua presença, a mãe de José precisa trabalhar porque seu pai não trabalha, ele sempre está muito ocupado bebendo sua cachaça, a mãe de José, José e seus irmãos apanham quando o pai chega bêbado em casa. José não recebe abraços, nem ajuda pra fazer sua atividade de casa, em vez disso é xingado diariamente, recebe palmadas em vez de beijos. Não sabe o que é certo e o que é errado pois ninguém nunca teve paciência pra ensinar isto a ele. José não sabe demonstrar afeto porque na sua curta existência nunca recebeu afeto de quem mais desejou, não sabe respeitar o outro porque suas necessidades emocionais nunca forma respeitadas, José bate, é agressivo, um menino muito violento, porque a violência é a forma que ele conhece de estabelecer uma relação. Então, infelizmente constatei, José estava ali, naquele vídeo.
Não quero parecer determinista, nem ao menos desejo aquele futuro para o meu aluno, mas não há como não refletir que José poderá tornar-se um daqueles meninos do vídeo. Numa cidade onde existem turmas, bem cheias inclusive, de EJA no presidio, podemos atestar que o sistema educacional na nossa cidade está fadado o fracasso. É um retrocesso, é vergonhoso inclusive e me incomoda bastante saber que a escola não consegue fazer seu papel. Que aprender a ler, conhecer Geografia, História e Física não tem nada de interessante, e que a necessidade de ter um Iphone, comer sanduíches caros e andar com o tênis mais descolado do momento superam a vontade de aprender algo. O conhecimento é a mercadoria mais sem graça na “prateleira dos desejos” de nossas crianças.
José vai crescer e é inevitável que ele passe a agredir também sua namoradinha na 5ª série, será também inevitável que ela engravide com 13 ou 14 anos e que José, confuso, não bata nela por isso. Por vários motivos ele pode se envolver com o crime e ser o protagonista de outros vídeos de câmeras de segurança, daqui a pouco ele pode estar ali no mercadinho da esquina pegando toda a grana do caixa pra comprar mais pó ou pagar suas dividas de drogas. As drogas, ah elas entrarão tão cedo na sua vida quanto a violência, elas serão o seu barato, a maneira mais eficaz e bacana de fugir da realidade de sua insignificante vida. As fugas serão constantes, pois pra quem aprendeu a fugir das surras do pai, da chatice da escola, fugir da policia que pode persegui-lo após o assalto será fichinha. Algum tempo depois José poderá voltar a escola, só que dessa vez, nas turmas do EJA no presidio.
Pensar nessas possibilidades como sendo reais a este e a tantos outros alunos, me preocupa, me inquieta e me tira o sono mesmo. Eu passo a mão na cabecinha do meu filho de 2 anos que dorme ali tranquilamente e penso em quantos Josés ele pode encontrar na vida dele, temo que ele seja a vitima ou o comparsa de José. Então, tento sair da minha zona de conforto e do alto dos meus privilégios, em ser branca, ter uma profissão, ter informação e leitura sobre como educar uma criança e busco me colocar no lugar da mãe de José, no lugar das mães daqueles meninos do vídeo. O que realmente levou aquelas crianças a praticar aquele assalto? Foi a necessidade de consumo criada pela sociedade capitalista? Foi a fome e a miséria que ainda é companhia de muitas famílias brasileiras? Ou será que foi o abraço não dado e a compreensão que cedeu lugar a surra oferecida a criança “levada”? Faltaram aulas mais interessante sobre a revolução francesa ou sobre os átomos? Faltou encantamento pelo conhecimento? Sobrou televisão e comerciais sobre tênis descolados? Não sei. O que posso dizer é que José pode tornar-se um bandido! E isso me assusta mais do que um assalto. E eu não quero, definitivamente que ele seja um bandido morto. ”Bandido bom é bandido morto.” Não, não é! Não quero concordar com esse absurdo proferido diariamente nos telejornais e compartilhado incansavelmente nas redes sociais, pois outros Josés virão e quantos deles terão que morrer para entendermos que estamos indo no caminho errado, que estamos todos falhando? Escola, sociedade, família, estado. A culpa é coletiva, mas as consequências também são.
Na próxima aula vou continuar abraçando José quando ele chorar, quando ele sentir-se confuso, quando ele bater nos seus colegas, continuarei usando a pouca influencia que tenho sobre ele para ensiná-lo a respeitar os limites entre a sua vontade e a vontade dos outros. Continuarei ensinado ele a brincar com massa de modelar, estimulando-o a criar histórias e a desenhar e torcendo pra que ele continue segurando o lápis com firmeza ao invés de empunhar uma arma para outro ser humano.
*José é um nome fictício, e sua história é a história de muitos alunos que passaram pela minha vida profissional.
Por: Danielly Moura


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