Professora documenta e relata detalhes de protesto e ocupação em Santa Cruz do Capibaribe


Gostaria de descansar, mas não consigo. Mesmo estando a mais de 30 horas sem dormir, o sono não vem. Sinto-me eufórica e, ao mesmo tempo, triste em saber que tudo acabou e que o que era moral e legalmente justo não foi feito. A ocupação da prefeitura, a união de uma classe de pessoas aguerridas, a torcida das pessoas comuns, pessoas que diariamente tem seus direitos tolhidos pela crise politica e social que se instaura em nosso país e que de alguma forma sentiram-se “vitoriosas” em ver uma classe tão massacrada como a nossa lutar bravamente por seus direitos, não saem da minha cabeça. Foi tudo muito significativo, muito intenso e muito forte de se ver e viver.  Escrevi algumas coisas num caderno durante a ocupação e agora quero guardar esse relato, pretendo utiliza-lo algum dia enquanto fonte histórica. Me vem  todo instante a preocupação, o dever de escrever. É preciso documentar, registrar a história ainda fresca na mente.   

Pré-ocupação - Dias 8, 9, 10 e 11 de Dezembro de 2016.

É bom lembrar que o movimento não surgiu na segunda-feira. Foram 3 dias de parada sem nenhuma negociação por parte do governo. Estava claro nas assembleias, nos grupos das redes sociais, que a classe dos professores não aceitava o posicionamento da gestão de esperar a decisão do Supremo Tribunal Federal. Sabíamos e temíamos que o prefeito fosse seguir o caminho trilhado em outras cidades, em que a “brecha” encontrada nas leis que regulam e destinam os recursos da educação foi utilizada. Sabíamos também que havia a possibilidade de negociação política entre o gestor e a classe. Decidimos buscar esta negociação já sabendo que seria difícil. Organizamos o movimento de sensibilização da sociedade através dos canais que tínhamos. Utilizamos as redes sociais com muita intensidade, já que estas configuram-se atualmente enquanto espaços de sociabilidade legítimos. Queríamos o povo do nosso lado. Não nos restringimos à mídia. Ocupamos a secretaria de educação por algumas horas quinta-feira, após a assembleia, passamos nas ruas com nossos cartazes, apitos, narizes de palhaço. Voltamos à secretaria e ficamos lá algum tempo pelo fim da manhã. Colegas chegaram das escolas, ainda sem almoçar, e lá juntaram-se a nós na eterna espera de sermos ouvidos, mas ninguém nos recebeu.

Na Sexta-feira, nos encontramos na escola Ivone Gonçalves. Sentamos, elaboramos estratégias para sensibilizar a gestão e abrir a negociação. Decidimos continuar movimentando as redes sociais. Gravamos um vídeo coletivo onde todos os professores falavam um único texto (nossa voz era apenas uma: #queremosoqueénosso!). Saímos de lá, compartilhamos o vídeo e em pouco tempo quase 2 mil visualizações somente na publicação original, no perfil de nossa colega Elieudes. É realmente assustador o alcance que as redes sociais têm. Além do vídeo, ficou acertado que faríamos dois momentos de panfletagem no domingo: um pela manhã na feira de frutas e um à tarde no “Cidade Lazer”. Assim o fizemos. Muitas pessoas nos apoiaram, pegaram mais panfletos para distribuir em outros lugares, nos incentivaram a ir até o fim. Outras perguntaram o que estava acontecendo. Explicamos, afinal somos professores e estamos habituados ao processo pedagógico. Momento muito simbólico foi entregar um panfleto à primeira dama, que apenas o recebeu. Nenhum de nós falou ao público presente, apenas exibimos cartazes e, ao entregar os panfletos, a maioria falava “Leia! É importante!”. Senti o impacto e o choque das pessoas ao deparar-se ali, num espaço de lazer, com a crise que se instaura na gestão municipal e que é diariamente “contornada” através da tentativa de silenciamento dos problemas proferidos nas rádios e blogs locais.

O dia D. Dia 12 de Dezembro de 2016.

Chegava a segunda-feira e, como havia sido acertado na sexta anterior, fomos à secretaria de educação levando nossos cartazes e nossa vontade de negociar. As músicas que representavam nosso sentimento e pensadas coletivamente já estavam gravadas num CD. Cantamos Chico Buarque, Geraldo Vandré, Cazuza, Gonzaguinha... A professora Claudenice Dias chegou, cumprimentou os professores, sorriu. Sorrimos também. Claudenice é, e sempre será, professora. Ela provou isso.

Até as 9 e meia ninguém nos recebeu. Decidimos caminhar até a prefeitura, cantando e seguindo as canções e gritávamos palavras de ordem, as frases escritas nos cartazes. Estávamos com as fardas das escolas, de óculos escuros, protetor solar e apitos nos bolsos. Estávamos preparados para o sol, para o calor, para a negociação.

Chegamos à prefeitura, ficamos ali à sombra das gameleiras da Avenida Padre Zuzinha. Elieudes fez algumas colocações, leu o comentário de nossa querida Luciene sobre a fala do prefeito em seu programa de rádio. Cada parágrafo do texto foi aplaudido, a fala de Luciene era o nosso sentimento. Senti gratidão  por ter conhecido e convivido com uma mulher tão forte, inteligente e íntegra.

Entramos na prefeitura, sentamos, ocupamos. Percebemos a tensão dos funcionários, mas estávamos ali esperando como quaisquer outros cidadãos o fazem quando dirigem-se à prefeitura para resolver um problema. Mais uma vez, ninguém nos atendeu. Protestamos, cantamos, entoamos as frases dos cartazes. Alguém trouxe uma fita adesiva e colamos os cartazes na frente da prefeitura.

Um dos funcionários levantou-se e disse, num tom aumentado, para que fosse ouvido pelos professores que estavam mais distantes; “esse povo devia estar trabalhando! Bando de vagabundos!”. Uma professora exaltou-se e respondeu que não era vagabunda, estava apenas querendo o que era seu.

Ele retirou-se da recepção e foi para dentro da prefeitura. Alguns professores alteraram-se, outros tentavam acalmar a professora, mas todos olhávamos, indignados, aquela atitude repulsiva. O horário avançava, alguns tiveram que sair para ministrar aulas em outros municípios e escolas. No entanto, muitos chegavam para juntar-se a nós. Ali ficamos, aguardando. Em um dado momento tive que ir buscar meu filho na escola, fui em casa, tomei banho, almocei. Tentei descansar 15 minutos antes de voltar, mas no whatsapp no grupo do sindicato li: “estamos presas aqui”, “desligaram os ar-condicionados”, “tiraram a água do filtro”, “estamos com calor”. Me desesperei, pois minha irmã estava lá, grávida de 6 meses. Liguei para um amigo que trabalha no fórum. Ele disse que ligasse para a polícia, pois era cárcere privado.  Assim o fizemos, mas ninguém atendeu o telefone. Corri para a prefeitura.

O desespero estava ali, professoras, todas mulheres, davam água com canudos às outras que estavam presas dentro do prédio pelas brechas da porta. Abanavam-se com os panfletos por causa do calor insuportável. Andavam de um lado para outro. Elieudes, que tinha ido buscar uma caixa de som, chegou com Claudiana. Pedimos para o segurança abrir a porta. Ele, irredutível, seguia ordens que não sabemos de onde vinham, mas que com certeza não eram a vontade dele. Insistimos. Elieudes tentava conversar, em vão. Tivemos a ideia de ligar a caixa de som e microfone, pedindo ajuda na ótica ao lado da prefeitura, e começamos a fazer barulho para chamar atenção. Conseguimos. Pessoas paravam na rua e um funcionário saiu de dentro da prefeitura e veio para a porta. Pedia para desligarmos o aparelho. Não desligamos. Elieudes, ao microfone, gritava: “Deixa a gente entrar! Deixa a gente entrar!”, em vão. Ela, então,  sabiamente, ligou para Michelle, minha irmã gestante que estava presa dentro da prefeitura, e a orientou a pedir ao segurança que abrisse para que ela saísse, pois por sua condição provavelmente não negaria.

Michelle veio, ele abriu a porta e Elieudes colocou a perna dentro da prefeitura. O segurança fechou, tentando não permitir a entrada. As professoras empurravam lá fora, mas dois homens empurravam lá dentro. Eu estava desesperada, ajudava a empurrar e pedia, aos gritos, para quem passasse na rua que chamasse a polícia, pois havia uma gestante passando mal lá dentro. Pensei em quebrar a porta, todos pensamos. O empurra-empurra parou, ele cedeu. Elieudes chorou de raiva, acompanhada por algumas. Michelle estava aos prantos, revoltada, preocupada, nervosa. Sugerimos chamar o SAMU, mas ela não quis, se acalmou, a convencemos a ir para casa. Indignada, ela foi.

Entramos, nos recompomos, entoamos nossas frases. A caixa de som, na calçada, tocava as músicas do nosso movimento. Outros professores trouxeram ventiladores, água, religamos as luzes e ar-condicionados. Todos ali estavam atônitos com a situação humilhante que passamos.

No meio da tarde, o secretário de educação Joselito Pedro foi até a prefeitura comunicar que o prefeito não se encontrava na cidade. Questionamos o porquê de não haver ainda um posicionamento da gestão, pois desde a quinta-feira indicávamos através da parada de 3 dias que queríamos uma negociação. Ele reiterou a posição do prefeito em dizer que esperariam a decisão do STF.

Anoiteceu, fui em casa e decidi que iria dormir na prefeitura, apesar de ter um filho pequeno e de saber de toda a logística que isso implicaria, mas não perderia aquele momento histórico e de luta para a minha classe. Pessoalmente, a noite foi o momento mais representativo do movimento. Alguns professores não puderam ficar, mas trouxeram comida, água e colchonetes. A cidade inteira falava disso. Fomos noticia nos blogs, na TV local, nas filas de supermercados, nas igrejas, nas escolas. A rua grande estava movimentada naquela noite. 

Todos queriam falar conosco, apertar nossas mãos, dizer “é isso aí, lutem pelo que é de vocês!”. Uma professora, já bem idosa, cabelos brancos, fez questão de ir lá. Perguntava: “mas vocês vão dormir aí mesmo, minha filha? ‘Tão doidos? Durmam mesmo, e só saiam quando ele der o dinheiro de vocês!”. Um outro senhor, humilde, da zona rural, Zomi do Pará era seu nome, foi nos ver. Levou pamonha, queijo, café. Ficou lá boa parte da noite e me disse que estava achando tudo muito bonito. Fiquei encantada com a consciência política daquele homem simples que, provavelmente, não sabia o que era sociologia nem FUNDEF, muito menos STF. Mas ele sabia o que era justiça, o que é gentileza. Zomi sabe “o que é certo e o que não é” e foi isso que o levou até ali.

Estudantes universitários e secundaristas, professores da rede privada, nossos filhos, estavam ali nos apoiando. Muita gente, direta ou indiretamente, também. Tivemos um momento de avaliação do movimento, nos fortalecemos. Professores que entraram em 2009 e que, assim como eu, não têm direito ao repasse dos 60%, mostraram que estavam ali pela educação, para que a verba destinada à educação seja aplicada tão somente nela. Nas falas de Sérgio Lucas, lembramos de Betânia e de Luciene, duas mulheres de fibra que não estavam ali fisicamente, mas simbolicamente sim. Elas têm uma história de luta pela educação pública de qualidade neste município que jamais se apagará.

Além da comida farta e do apoio da população, fomos presenteados com música de ótima qualidade pelo professor Saulo. Cantamos, dançamos e relaxamos depois daquele dia tenso. Muitas pessoas foram embora por volta da meia noite, permaneceram 14. Nos acomodamos. Alguns corrigiam provas, outros liam livros. Um grupo jogava dominó. Conversávamos o tempo todo com os policiais que faziam a segurança do local. Apesar de tudo, o clima era tranquilo. Às 3 da manhã, nos aquietamos e tentamos dormir. Às 4 e meia abri o olho e o sol já batia dentro da recepção da prefeitura. Pessoas passavam na rua grande, faziam sua caminhada matinal.

O desfecho final. Dia 13 de Dezembro de 2016.

A maioria levantou, tomamos o café da noite passada, comemos pães e bolos do dia anterior, organizamos, varremos o local, colocamos as cadeiras no lugar. A maioria dos professores que dormiram lá foram dar aulas, pois havia um combinado com os pais dos alunos que a parada seria até a segunda, e não até a terça. Outros, como eu, colocaram substitutos nas salas para poder permanecer na prefeitura. Sentimos o cansaço da noite mal dormida, mas logo outros companheiros chegaram, nos dando ânimo. Estávamos unidos. Mais duas senhoras trouxeram comida, as pessoas continuavam a nos apoiar.

Fui em casa, tomei banho e voltei. Nossa preocupação era não deixar poucos professores na prefeitura. Os funcionários já haviam chegado e trabalhavam normalmente. Nós ocupávamos, resistíamos e esperávamos algum posicionamento oficial. O prefeito estava na rádio, visivelmente nervoso, repetindo a mesma história de esperar a decisão do supremo. Acusava os professores e blogs de estarem fazendo sensacionalismo com a situação. Numa tentativa já comum por parte da gestão de manipular a opinião pública a seu favor, citou o fato de ter colocado água mineral nas escolas, dentre outras “obras” para a educação que não passam do âmbito da obrigatoriedade. Elieudes e Josenildo também fizeram uso do rádio e reiteraram o nosso entendimento e a nossa posição.

Na prefeitura, esperávamos ansiosos pela assembleia marcada para as 10 da manhã. A vereadora Jéssyca chegou e pediu para que formássemos uma comissão, pois o prefeito finalmente iria nos atender. Elieudes e Josenildo chegaram do rádio, foram aplaudidos e recepcionados com alegria, mas quando o prefeito pisou na prefeitura, todos se calaram. Não gritamos ou vaiamos, apenas respeitamos sua entrada.

Fomos para a reunião, eu estava na comissão. Depois de 30 minutos esperando numa sala, o prefeito chegou junto com Jessyca e Joselito. Josenildo falou sobre a nossa posição, Elieudes também. O prefeito recolocou sua posição, estava fechado, não havia negociação. Lembrei de chico Buarque em apesar de você, cantando; ‘ hoje você é quem manda, falou tá falado, não tem discussão” Ainda assim, falamos do movimento, da repercussão, das portas fechadas, da água retirada e dos ar-condicionados desligados, todos lamentaram. Houveram acusações por parte da gestão de distorções de discursos. Joseane, professora desde 1994 deu seu depoimento, falou de como sofreu com o congelamento de salários em 2002 a 2006. Houve emoção, houve choro. Sua fala foi impactante, mas não o bastante para sensibilizar o prefeito para uma possível negociação. Houveram momentos tensos, acusações, pedidos de retratações publicas.

 Os ânimos sem duvida estavam alterados. Foram 3 horas de tensão e pressão psicológica fortíssima. Raiva contida e extravasada, discursos vazios e demagogos e nenhuma, nenhuma proposta concreta! Josenildo sugere então que os 25% dos recursos que por lei tem que ser gastos com educação sejam utilizados de imediato e que sejam fiscalizados em sua aplicação por uma comissão formada por representantes do governo e professores. Os 75% restantes seriam também fiscalizados quando o STF decidisse sua finalidade. Uma proposta simples, mas que representava a única garantia que tínhamos naquele momento de que este dinheiro seria aplicado de forma correta e sem desvios. Uma proposta simples, só queríamos transparência. No entanto, o prefeito encenou, assim como um ator o faz no teatro, que não estava entendendo bem como funcionaria essa comissão. Acredito que até meus alunos de seis anos entenderiam. Explicamos novamente, Jéssyca também, mas ele pediu mais um tempo para reunir-se com sua equipe.

Depois de 15 ou 20 minutos ele pronunciou-se favorável à nossa proposta. Comunicamos que levaríamos a proposta para a categoria e, se aceita, a comissão seria formada. Saímos da sala quase congelando de tão fria. Eu estava desolada, chorava de raiva e tristeza. A proposta que havíamos conseguido era ridícula diante de tudo o que aconteceu, basicamente pedir permissão para acompanhar o gasto do dinheiro que era nosso em outras áreas, não menos necessitadas que a educação, mas simplesmente não era justo. Nas palavras de Zomi do Pará, “não era o certo”.  

Professor Leonardo levantou a proposta de bloquear a verba e deixar para que a justiça decidisse sua aplicação. João Paulo apresentou a nossa proposta, alguns professores explanaram suas opiniões e votamos. 31 votos a favor do bloqueio, 11 a favor da formação de uma comissão, 4 abstenções. Eu me abstive. Entendi que nenhuma das duas propostas era boa, nenhuma era justa. Decidimos, falamos para a mídia, desocupamos a prefeitura, limpamos o chão, tiramos os cartazes, pegamos nossas mochilas, provas e livros e saímos dali. Saí chorando, simplesmente não conseguia parar, pensando que sociedade é esta que estamos construindo para nossos filhos, onde leis simplesmente não são cumpridas. Onde políticos prepotentes, intransigentes e gananciosos são eleitos para administrar o nosso dinheiro da forma que quiserem. Onde temos que brigar, gritar, protestar para sermos apenas ouvidos. 

Em casa, mais calma, pude analisar o “estrago” que fizemos. A aula de cidadania que ministramos para Santa Cruz do Capibaribe. Saímos fortalecidos, mais unidos para continuar brigando por uma educação publica de qualidade. Mostramos que somos fortes, que o povo tem poder, apesar de não se dar conta disto. 

Por Danielly Moura

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