Pequeno resgate de uma tradição 'santa-cruzense'


Houve um tempo na historia de Santa Cruz do Capibaribe em que no feriado da semana Santa a cidade era habitada. Falo de uma época onde a cidade não era feita apenas de tecidos, empresas, lojas e picapes 4x4 espalhadas pelas avenidas da cidade. Época em que os habitantes andavam , passeavam, demoravam-se nestas ruas, hoje, desertas.

Na década de 1970, logo após o carnaval, comemorado pelas orquestras de frevo que espalhavam alegria pelas ruas da cidade, o cine Bandeirante encontrava seus dias de maior movimentação.  Sim, existiram cinemas nessa cidade e é de um deles que vamos falar. Na travessa Neci de Melo localizada no centro da cidade, no prédio onde hoje funciona um grande supermercado, as pessoas deliciavam-se com a sétima arte.

Segundo as lembranças sensíveis sobre as vivências ali erigidas, o Bandeirante foi um dos locais de sociabilidade mais intensa naquela Santa Cruz de outrora. Os filmes marcantes, os encontros e desencontros entre namorados, as emoções desencadeadas por aquelas películas exibidas, o ritual de entrada e de passeios pelo entorno do cinema, os lanches comprados na calçada, as travessuras das crianças para assistir o mesmo filme inúmeras vezes, os flertes, as músicas, a luz fraca do cinema, as histórias contadas. Histórias vividas de um local, de um tempo, que ousamos aqui “contar” novamente.

A semana Santa quando aproximava-se, era um período de lucro certo para o proprietário do cinema, o senhor Joel Morais, pois ao público já frequentador somavam-se outros tipos de pessoas dos mais diversos grupos  sociais. Assistir ao filme da Paixão de Cristo no cine Bandeirantes, além dos jejuns de carne na sexta-feira santa, do preparo de peixes e da ida à missa na igreja matriz, se tornou  mais um ritual “santo” dos santa-cruzenses nesse período.

A película era exibida incansavelmente nos dias “santos”, no período precedente e posterior à semana santa, com sessões diárias e em horários diferentes, no período da tarde e da noite. Mas, segundo o depoimento do Sr. Regivaldo Araújo, era uma película muito velha e desgastada que foi comprada posteriormente por Joel Morais, quando este percebeu que seria mais lucrativo adquirir sua própria película do que alugá-la todos os anos. Por este motivo, as sessões eram constantemente tumultuadas pelas “quebras” existentes na fita. Nas palavras de Regivaldo, Era um fita bem velha, que as vezes tinha a crucificação e depois era que Jesus vinha carregando a cruz ( risos) era partida e emendada errado! As pessoas gritavam de suas cadeiras “olha o roubo” numa forma de incitar a desordem, ou mesmo denunciar que os exibidores estavam pulando partes do filme propositalmente a fim de acelerar o andamento da exibição.

 Apesar das falhas da exibição, o ato de assistir ao filme da paixão de Jesus Cristo tornou-se um acontecimento importante no cotidiano da cidade. As moças vestiam-se com sua melhor roupa, as senhoras religiosas armavam-se com seus véus rendados e terços para ir ao cinema  em vez de ir a missa, as crianças aguardavam ansiosas o momento em que seriam levadas para ver a película. Existia todo um ritual, santo ou não, para frequentar aquele local, existia a intencionalidade de ver novamente a história da morte e ressurreição de Cristo, de viver religiosamente aquele período ou simplesmente participar de um evento social importante.

Por caracterizar-se como o período mais lucrativo do Bandeirante, durante a semana santa, Joel investia fortemente na propaganda. Colocava um carro circulando com alto-falantes pela cidade, além dos “pontos” espalhados pelas ruas principais, que nessa época, limitavam-se às ruas do centro antigo. Os pontos eram espécies de cornetas distribuídas em postes de madeira todas interligadas à divulgadora de Amaral; O estúdio da Amaral publicidade, que ficava localizado na Avenida João Francisco Aragão, uma das principais vias de acesso à cidade, era responsável pela divulgação de boa parte dos filmes exibidos no cinema, no entanto, no período da semana Santa o carro de Joel, uma Rural Willys, percorria os quatro cantos da cidade com propagandas que chamavam bastante a atenção do público.

O Sr. Regivaldo Araújo que trabalhou para Joel, fazendo a propaganda no carro nos conta quais eram suas estratégias para  divulgar o filme:

Todo mundo ia assistir a Paixão de Cristo! Eu fazia uma propaganda psicológica e as pessoas se ajoelhavam e se benziam! A gente colocava um crucifixo bem grande atrás da rural, ai parava numa rua e ficava fazendo a propaganda, e eu fazia uma propaganda teatral e as velhas choravam e se benziam, e faziam genuflexão quando o carro passava!(risos)

Regivaldo, conhecido nesta época como Palaquê é uma personagem interessantíssima na história do cine Bandeirante. O Sr. Araújo, como atualmente é conhecido tem uma voz imponente e nas suas falas emprega frequentemente palavras rebuscadas, de efeito, que nos dão a impressão de estarmos conversando com um locutor de rádio em seu estúdio. O senhor de 65 anos nos recebeu no escritório de sua empresa de compra e venda de veículos usados, neste local, ficam estacionadas suas motos de modelo custom e um quadriciclo que ele mesmo produziu a partir de peças de carros e de motos usadas. O Sr. Araújo faz parte de um moto clube da cidade, no seu discurso percebemos o gosto e o prazer que sente pelas aventuras.

 E foi esta sua personalidade marcante aliada a sua voz imponente que fez com que as propagandas dos filmes feitas por ele fossem definidas pela irreverência e teatralidade. A voz de Palaquê figura na memória sensível acerca do Bandeirante como um dos símbolos mais marcantes que caracterizaram e demarcam aquele espaço do cinema. No pequeno excerto retirado do texto sobre o Bandeirante, escrito por Edson Tavares em uma rede social, percebemos o tom nostálgico e a empatia que a voz do nosso entrevistado causava nos frequentadores, (...) sessão iniciava sempre às 8 horas, como era amplamente divulgado pelas ruas da cidade, no carro de som do cinema, na voz anasalada de Palaquê. Para mim, era um mundo mágico!  O Sr. Araújo nos conta que nas suas propagandas ele mesmo era quem criava os textos das mesmas, nestes, procurava sempre contar trechos dos filmes, deixando um suspense no ar para que as pessoas fossem ao cinema conferir a continuação daquela história. O tom da voz, variava de acordo com a história; comovente, dramática, alegre. Tudo dependeria da película a ser exibida. No entanto, seus famosos jargões são lembrados pela maioria dos entrevistados que frequentaram ou trabalharam no cine Bandeirante, o próprio Sr.Araújo nos lembra como fazia esta propaganda e alguns destes jargões:

E a propaganda do cinema eu me lembro que eu era quem fazia textos, porque era bonito os nomes: cinemascope!  Isso é um nome bonito é ou não é? Pra uma pessoa analfabeta! (risos) Tela panorâmica! Então, eu me lembro que eu tinha um jargão que eu dizia: Hoje na gigantesca tela panorâmica do cine Bandeirante, ai anunciava o filme e dizia: ''Não perda! (risos).

Além dos jargões, Araújo utilizava palavras diferentes cinemascope, gigantesca, panorâmica, para chamar atenção dos frequentadores. O uso de expressões ou palavras na língua inglesa ditas de forma aportuguesada também era uma característica bem presente da sua propaganda, ele confessa que muitas vezes não sabia o significado das mesmas, mas as usava porque tanto ele quanto as pessoas que o escutavam “achavam bonito” aquela forma chique de falar.

Quando o bandeirante fechou suas portas na década de 1980, a tradição de assistir nas telas a historia da morte e ressurreição de Cristo perdeu-se. No entanto, continua viva e forte a lembrança desse momento na memoria de alguns habitantes da cidade. Lembrar é uma forma de viver e de manter a história e a memória de nossa cidade, tentando fazer com que ela não se destrua totalmente pelo devir do tempo.

Por: Danielly Moura

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